Mulheres que inspiram | entrevista
Em novembro de 2019, respondi algumas perguntas feitas pela professora e carnavalesca Maristela Machado Corrêa. As respostas colaboraram para a elaboraçãodo enredo do Carnval 2020 da Escola de Samba Unidos do Promorar, de Arroio Grande, cidade onde nasci. O enredo homenageou "Mulheres que inspiram".
M. C.: Quando iniciou a paixão por poesia?Com quem aprendeu a arte de escrever?Qual é tua maior motivação para criar e escrever poesias? Qual o teu maior orgulho como escritora? Como é ser destaque com premiações na área literária? Quem é tua inspiração? Por que ,na tua opinião o teu protagonismo inspira?
Resposta:
M. C.: Quando iniciou a paixão por poesia?Com quem aprendeu a arte de escrever?Qual é tua maior motivação para criar e escrever poesias? Qual o teu maior orgulho como escritora? Como é ser destaque com premiações na área literária? Quem é tua inspiração? Por que ,na tua opinião o teu protagonismo inspira?
Resposta:
Minha
relação com os livros começou muito cedo, na casa da minha avó paterna, tinha
muitos livros, ela gostava de ler. E como eu morei com ela na primeira
infância, me familiarizei com a leitura. Depois teve a Biblioteca Municipal de
Arroio Grande, que eu também frequentava.
Quanto
à poesia, especificamente, eu sempre fui muito atenta às letras das músicas que
ouvia. Aprendi muito com a música popular brasileira (em suas diferentes
matrizes) e latino-americana, de Renato Russo, Raul Seixas, a Ataulfo Alves, João
Chagas Leite, Milton Nascimento. Mas, como se pode ver, todas as referências
eram homens. E eu uma guria, do interior do Rio Grande do Sul, onde a indústria
musical do gauchismo, além de nublar a nossa visão para outras vertentes, ignora
e até abafa as potencialidades criativas de mulheres. O mais cruel desse tipo
de tentativa totalitária de padronização da cultura de uma região é que ela
atua justamente naqueles nichos que são referências simbólicas para a maioria
das pessoas, mas sobre as quais apenas uma pequena porção tem legitimidade para
criar (homens brancos). Eu cresci na volta de bichos, vacas, cavalos, de
árvores, lavouras, latifúndio, escravidão, homens de bombacha. Mas as
representações desse mundo que eu via na arte não tinham nada a ver com o que
eu vivenciava, eram criações de homens. Existir mulher parecia uma eterna
repetição da cansativa história da costela do adão.
Então,
minha primeira oportunidade de ver esse mundo por uma ótica diferente, foi
quando conheci os orixás e a toda a riqueza das tradições de matriz africana aí
da nossa região. Um universo que estava muito próximo do meu cotidiano, mas era
sistematicamente afastado pela segregação dos espaços sociais, pelo racismo.
Meu primeiro livro de poemas, Os baobás
do fim do mundo, é uma retribuição singela a tudo que eu pude aprender com
a cultura negra de do Rio Grande do Sul. Foi ver o sul no espelho da Mãe Oxum:
muito sangue, mas também muito mel.
Foi
nessa época que a poesia entrou na minha vida sem bater na porta. Eu tinha um
desejo muito intenso de viver com arte, desde pequena, mas a vida prática e os
condicionamentos sociais iam sistematicamente me afastando desse mundo, de
beleza, potência e “subversão”. O conservadorismo tem muito medo da arte. O
conservadorismo é triste, cafona, debochado; a arte é o contrário dessas
fraquezas todas. Então, como eu não tinha ainda ferramentas pra me pensar
artista, a parte mais bonita de mim me apontou o caminho e eu comecei a sonhar
com poemas. Passava noites acordando com imagens de poemas, que anotava em
cadernos e pedaços de papel. Esses poemas alimentaram o blog Salamancas Supersônicas e depois o A sanga das patavinas (isso foi entre
2008 e 2011). Depois disso, não parei mais, deixei a arte se instalar na minha
vida. Foi nessa época também que conheci o artista plástico José Darci
Gonçalves, que veio a se tornar um grande parceiro de artes e andanças.
Mas
antes de publicar livros, fiz muitas “poemúsicas”, poesias que foram cantadas
por artistas da região – a primeira delas foi a Mandala, cantada pela Marcela
Mescalina, que achou música ali naquelas palavras. Depois fizemos um videoclipe
da música Negra (https://www.youtube.com/watch?v=dD7p1-4I-Rk).
Em 2013 e 2014, as canções Bestas e Torrão foram premiadas no Festival da
Canção de Canguçu – letras minhas, interpretação da Marcela.
O
meu maior orgulho vem do fato de eu estar criando junto com outras mulheres,
contemporâneas minhas (Clarissa Ferreira, Angélica Freitas, Diane Sbardelotto,
Thays Prado). Saber que um poema meu fez o dia de alguém mais alegre, ou que
preencheu momentos de desalento de uma pessoa, ou que soou como música para uma
artista que procurava palavras pra dizer o que sentia, é a motivação. Mais
recentemente, o livro Mugido tem me trazido retornos muito felizes nesse sentido,
de ter oferecido uma via para artistas gaúchas desenvolverem seus projetos. A
obra virou espetáculo musical com As Tubas, um grupo de musicistas radicadas em
Porto Alegre; está sendo lido por grupos de poesia; tem inspirado performances
de artes visuais; tem embasando pesquisas psicanalíticas e feministas – todos
projetos de mulheres que se inquietavam com as mesmas sensações de “vazio
criativo” que eu. Nós não somos, cariocas, paulistas, muito menos universais,
temos nossas marcas (de cor, de sexualidade, de região, todas elas
entrecruzadas). E nós queremos criar e contar a nossa versão de nós mesmas, sem
intermediação ou benção dos homens.
Em
grego, a palavra que designa poesia é póiesis.
Póiesis quer dizer, mais ou menos, “fazer com que aconteçam coisas
extraordinárias”. E no meu fazer poético eu tento levar isso à radicalidade.
Quando a gente vive no interior, às vezes tem a impressão de que nada acontece.
Isso pode nos resignar ao marasmo (ao ressentimento do tédio), mas também pode
nos estimular a buscar vida e acontecimento nas coisas mais elementares do
cotidiano: um arroio que carrega as nuvens nas costas, uma estrada chamada
solidão, uma tapera cujos escombros a gente tenta pintar, um homem velho que
capina as calçadas como quem costura, as figueiras eternas etc.
As
premiações são boas porque nos ajudam a andar, viajar, conhecer mais gente,
mais artistas. Eu acho que arte é como axé, só tem efeito se a gente consegue
partilhar. E também – as premiações - colocam em evidência a arte de uma mulher
que é do interior, mostram que é possível ser ouvida, mesmo não tendo uma voz
hegemônica.
Quem
me inspira é gente alegre, desapegada de poderes tristes. Minhas parceiras de
música, poesia, carnaval, futebol, me inspiram. Os bichos, as árvores.
Eu
quero que quem me escute, me leia, se sinta capaz de beleza, de espanto, de
novidade, como eu me sinto ao escrever. Acho que isso inspira.
Marília Floôr Kosby
01/12/2019
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